Tecer ideias, estabelecer conversações e partilhar saberes

quarta-feira, 7 de março de 2012

O Retrato de um Amigo

"Cocteau dizia que há homens com coração de diamante que apenas reagem ao fogo e a outros diamantes e negligenciam o resto. (...) Eugénio de Andrade, vulcões de camaradagem exigente e limpa, ilhas fraternas de rigorosa ternura, abrigos de pedra suave onde encostar a inquietação da febre, pessoas que nos reconciliam com a noite mais escura da alma de que Scott escrevia, por dela nos trazerem vestígios da manhã. E é de Eugénio de Andrade que falo hoje, perpétua varanda de basalto em chamas de frente para o mar.

Chamaram-lhe o amigo mais íntimo do sol: de acordo, se o sol for obstinado e severo. Chamam-lhe poeta: de acordo, se as palavras nos trazem notícia de veemência do sangue. Chamam-lhe difícil: de acordo, se notarem a bondade de menino na pomba do sorriso que de tempos a tempos acende os passos seus e os nossos e nos mostra a única vereda que caminha a direito, macieiras fora, na direcção do rio. Onde se descansa os dedos tudo se torna gato comedido e atento. Onde os olhos nascem aprendemos com ele o intransigente júbilo do mundo. E no entanto que geografia de dor no país do seu rosto, que discrição no sofrimento, que impediosa dignidade medida em cada sílaba. A total ausência de vaidade do seu orgulho foi o que, ao encontrá-lo pela primeira vez, mais profundamente me comoveu. (...)

Ainda que em guerra, Eugénio reconcilia-nos connosco ao deixar entrever os degraus que nos falta subir para estarmos lá em baixo, no lugar que é o nosso, manchados da comovida urina e dos líquidos obscuros que nos protegem ao nascer e nos esperam, na sombra da morte, a fim de nos ajudarem a partir, pobres criaturas mudas vestidas de ranho e de poeira celeste. Para além da amizade que é nele, dura e nobre, isto lhe devo também: o retrato da minha condição e a certeza de que algo para além e mim continuará nos seus versos, seja pássaro, nuvem ou laranja madura. 

Escrevi um dia que quando o coração se fecha faz mais barulho que uma porta. Não imagino como lhe agradeço, Eugénio, que o seu se mantenha calado num vigilante desvelo, convidando-me a entrar onde a máscara de bronze nos aguarda para ficar connosco, naquela sala aberta rumo às palmeiras da voz". (1)

António Lobo Antunes, sobre Eugénio, num retrato de amigo, sobre um poeta muito especial, que é o nosso autor do mês nas Bibliotecas do Agrupamento.

(1) António Lobo Antunes, "Bom Dia Eugénio", 
in Segundo Livro de Crónicas, Págs. 301-302
Imagem (Via Fundação Eugénio de Andrade)

Sem comentários:

Enviar um comentário