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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Um carta para Rómulo de Carvalho

(Deixamos uma carta a Rómulo de Carvalho, escrita pela filha, Cristina Carvalho e que nos dá aquilo que também a nós, sempre nos pareceu a sua grandeza, entre a humildade e a simplicidade, a sabedoria de quem sabia escrever caminhos novos. Aqui fica uma página para conhecer o espólio diverso de materiais, a obra e a figura de um homem acima do tempo, pela universalidade das suas ideias.)

"I - Conhecemo-nos no dia dez de Novembro de 1949. Eu, de olhar embaciado e turvo, sinto-o mas não o percebo. Ele, de olhar sábio e transparente, percebe-me mas não me sente. Está proibido de me tocar. O nascimento foi difícil, muito difícil, doloroso, angustiado. Passaram uns anos até sozinha conseguir alcançar-lhe o colo (...)

Nessa altura eu via o meu pai enorme, alto, lindíssimo, e, no seu rosto, do que melhor me lembro eram os olhos grandes e atentos. Nunca foi preciso falar muito. Ainda hoje não é preciso falar muito. Os seus olhos continuam a brilhar, a aceitar e aperceber o incompreensível. (...)

II -  Durante todos estes anos da minha vida em que o tenho acompanhado, apercebo-me realmente do sentido universal da sua poesia, daquela que li nos seus livros e que se  revela a todo o momento da nossa convivência através das palavras mais simples, dos sinais mais discretos e essa é, de facto, a chave que abre todas as portas: aos meus olhos, o seu recado é duma simplicidade que me confunde e faz pensar; a sua atitude perante os acontecimentos da vida é incrivelmente modesta, a ironia é deslumbrante e nunca incómoda. O seu pensamento profundamente humanista, a percepção antecipada de certos acontecimentos, a inteligência limpa, livre, o olhar penetrante e atento a tudo e a todos, as lições tão claras que ainda hoje oferece aos netos, revelam-me uma personalidade rara, que felizmente, muitos conhecem. (...)

Por isso calculo que, se António Gedeão fosse vivo, continuaria a escrever a sua poesia encostado ao tal armário alto, talvez hoje com uma caneta esferográfica, mas sempre numa folha de papel. Rómulo de Carvalho, meu pai, que no próximo dia vinte e quatro de Novembro completa noventa anos, este sim, este homem continua a viver deslumbrado com a ciência e com a técnica que se desenvolveu neste século , sonhando com o que mais aí virá."

Nota actual (de 24 de Novembro de 2011) - meu pai morreu no dia 19 de Fevereiro do ano de 1997.

Cristina Carvalho
(excertos da carta escrita em 1996 no Jornal de Letras), in http://blogs.publico.pt/dererumnatura/

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