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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Memória de Erico Veríssimo

"Uma noite me disseste que Deus não existe, que em mais de vinte anos de vida não o pudeste encontrar. Crê que nisso se manifesta a magia de Deus. Um ser que existe mas é invisível para uns, e mal perceptível para outros e de uma nitidez maravilhosa para os que nasceram simples ou para os que adquiriram simplicidade por meio do sofrimento ou da profunda compreensão da vida. (...)

Quero que abras, os olhos, Eugénio, que acordes enquanto é tempo. Peço-te que pegues na minha Bíblia, que está na estante dos livros, perto do rádio e leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será difícil achar, pois a página está marcada com uma tira de papel. Os homens deviam ler e meditar nesse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo, que não trabalham, nem fiam e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles. (...) É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Mas precisamos dar um sentido humano  às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso, nos tiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do Céu. (...)

Há na Terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com os do amor e da persuasão. Considera vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um homem de acção e não um puro contemplativo. Quando falo em conquista, quero dizer a conquista de uma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, do espírito de cooperação. 

E quando falo em aceitar a vida não me refiro a uma aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do Mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há-de levar. Precisamos, portanto de criaturas de boa vontade."

Erico Veríssimo, Olhai os Lírios do Campo
(Memória de um grande escritor de língua portuguesa, de nacionalidade brasileira e cuja memória física já leva trinta e seis anos. Mas tem uma obra notável , a descobrir pela sua humanidade, pela reflexão do que nos torna humanos, em descrições de grande significado sobre o real e o que podemos construir).

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